terça-feira, 16 de março de 2021

NFT: como funciona o registro de coleções digitais que já valem milhões de dólares

Sistema opera como selo único para identificar e vender objetos físicos ou virtuais. Tecnologia cria novo mercado milionário de arte, como no caso de obra digital leiloada por R$ 389 milhões.

Se já era difícil entender as obras de arte contemporânea, agora o público pode coçar a cabeça também ao contemplar uma nova forma de negociar estes trabalhos.

Quem acompanha o mercado da cultura toma um susto por dia com os preços milionários de obras digitais. O combustível deste comércio turbinado tem três letras: NFT - "non fungible token" em inglês, ou token não-fungível. É uma espécie de selo de autenticidade digital.

O selo pode ser usado para itens físicos ou digitais (vídeos, fotos, gifs, códigos, áudios...). Com isso, colecionadores pagaram:

US$ 69 milhões (R$ 382 milhões) por imagens do artista Beeple;

US$ 2 milhões (R$ 11 milhões) por edições especiais do novo disco da banda Kings of Leon;

US$ 208 mil (R$ 1,1 milhão) por um vídeo de uma jogada de LeBron James, entre outros.

Calma. O preço pode ser inacessível, mas a tecnologia, no fim das contas, é compreensível. Entenda a novidade em perguntas e respostas:

O que é NFT?

A palavra-chave dos tais "tokens não-fungíveis" é justo essa que a gente não entende. Está lá no dicionário: fungível é uma coisa que pode ser substituída por outra da mesma espécie. Portanto, o "não-fungível" é único. NFT é um selo digital associado a um item que garante a sua autenticidade.

Por exemplo: em 2017, os artistas Matt Hall e John Watkinson criaram uma série de ilustrações de personagens chamados CryptoPunks. Cada imagem é associada a um NFT, que eles registram e colocam à venda. O comprador se torna o único dono da imagem.

Antes de detalhar a tecnologia, o primeiro passo é entender o motivo de alguém querer ser dono de uma obra digital. Afinal, outras pessoas ainda podem baixar pela internet e copiar o arquivo infinitamente.

O segredo é comparar a colecionadores de obras de arte. Qualquer pessoa pode baixar para o seu computador ou celular uma imagem de "Guernica", de Picasso, ou a "Mona Lisa", de Da Vinci. Mas só uma pessoa pode ter o status e o prazer de ser a dona do quadro.

O NFT leva essa escassez - possibilidade única de propriedade - para a obra digital. Assim, cada um dos mais de 10 mil CryptoPunks, primeira série de obras que usou a tecnologia, vale hoje em média US$ 30 mil (R$ 167 milhões), e suas vendas já movimentaram US$ 90 milhões (R$ 501 milhões).

Compreendida a tara psicológica de colecionadores digitais que se jogam no NFT, é hora de voltar ao mecanismo tecnológico. O registro e a venda de NFTs usa blockchain...

E o que é blockchain?

Essa o G1 já explicou. Blockchain é uma espécie de grande “livro contábil” digital que computa vários tipos de transações e tem registros espalhados por vários computadores. No caso das moedas criptografadas, como o bitcoin, esse livro registra o envio e recebimento de valores.

Para facilitar, pode-se fazer a seguinte analogia: as "páginas" desse "livro contábil" estão armazenadas em várias "bibliotecas" espalhadas pelo mundo; por isso, apagar o conhecimento presente nele é uma árdua tarefa.

Este sistema é formado por uma “cadeia de blocos”. Um conjunto de transações é colocado dentro de cada um desses blocos, que são trancados por uma forte camada de criptografia. Por outro lado, a blockchain é pública, ou seja, qualquer pessoa pode conferir as movimentações registradas nela.

Todas as transações que acontecem na blockchain são reunidas em blocos. Cada bloco é ligado ao anterior por um elo, um código chamado "hash". Juntos, eles formam uma "corrente de blocos", ou "blockchain". Os responsáveis por montar a "blockchain", no caso das criptomoedas, são os chamados mineradores.

Ou seja: a blockchain é perfeita para registrar esses tokens únicos que são associados a itens físicos ou digitais e depois comercializados, os NFTs. Aliás, a maior parte das negociações usa criptomoedas, como o bitcoin - mas dá para comprar e vender NFTs com moedas tradicionais também.

Quais são os principais negócios com NFTs até agora?

Todo dia um negócio maluco e milionário com NFT aparece no mundo da arte. Veja alguns dos mais comentados recentemente:

A banda americana Kings of Leon, que já passou do seu auge artístico e comercial, conseguiu renovar sua imagem e sua conta bancária graças ao NFT. Eles lançaram versões "VIP" do novo álbum "When you see yourself", que incluem, além das músicas, entradas vitalícias em shows e artes exclusivas. Até agora, arrecadaram US$ 2 milhões (R$ 11 milhões).

A cantora Grimes, mulher do empresário Elon Musk, fez no início de fevereiro um leilão com dez obras de arte digitais, e arrecadou cerca de US$ 6 milhões (R$ 33 milhões).

A tradicional casa de leilões Christie's realizou uma venda por US$ 69 milhões (R$ 382 milhões) de uma obra de Mike Winkelmann, conhecido como Beeple. É uma colagem de 5 mil imagens digitais que ele criou diariamente desde 2007.

O CEO do Twitter, Jack Dorsey, registrou seu primeiro tuíte em NFT e vendeu a posse por US$ 2,5 milhões (R$ 13,9 milhões) em um leilão de caridade.

A plataforma Top Shot vende trechos de vídeos de jogos de basquete, chamados "momentos", como um trecho de dez segundos de uma jogada de LeBron James por US$ 208 mil (R$ 1,1 milhão).

No início de março, uma empresa de tecnologia queimou um painel de Banksy e vendeu o vídeo que mostra a obra queimando em NFT por US$ 380 mil (R$ 2,1 milhões).

Quais são os dois lados da moeda no NFT?

Entusiastas do NFT apontam a chance de artistas furarem a fila de intermediários de olho em fatias dos seus lucros. Por exemplo, músicos que dominam o sistema podem driblar gravadoras, distribuidoras, revendedores de ingressos...

Em vez dos milésimos de centavos que eles ganham a cada play em suas obras em streaming, eles podem vender material exclusivo ou limitado direto para os fãs, como Kings of Leon e Grimes.

Já os céticos dessa tecnologia citam a incrível quantidade de energia elétrica que é gasta para fazer as transações com blockchain.

Só os bitcoins consomem anualmente mais energia do que toda a Argentina, apontou um levantamento da Universidade de Cambridge, no Reino Unido. O NFT tambem exige um alto gasto de energia com os muitos cálculos feitos em computadores para verificar as transações.

Além disso, há o risco de, empolgado pela novidade, o entusiasta do NFT acabe entrando em uma bolha financeira, um investimento não recomendado e com "riscos imponderáveis", como alertam os céticos dos bitcoins.

Rodrigo Ortega, G1, 16/mar