Uma pesquisa em andamento da Coppe/UFRJ apresenta novas soluções para a ocupação urbana na região das Vargens, região cujo planejamento enfrenta um impasse e é motivo de conflitos frequentes entre moradores e prefeitura. O estudo propõe uma nova forma de urbanização para parte dos loteamentos incluídos no Programa de Estruturação Urbana (PEU) das Vargens e na Operação Urbana Consorciada (OUC), dois projetos municipais reunidos num projeto de lei que divide a população local e, segundo a prefeitura, deverá ser arquivado assim que a nova Lei de Uso e Ocupação do Solo (Luos) estiver valendo.
A base do estudo tem como foco intervenções em loteamentos situados a oeste da Estrada Vereador Alceu de Carvalho, em Vargem Grande, o que pode futuramente servir de exemplo para sua implantação em outras áreas. A pesquisa propõe modificar as cotas dos terrenos alagadiços, fazendo com que fiquem entre um e dois metros mais profundos que os terrenos a serem utilizados para a construção de residências. Neles haveria parques naturais, para reserva de água da chuva, e áreas de lazer próximas.
Idealizador do projeto, Marcelo Miguez, professor do Departamento de Engenharia Civil da Coppe/UFRJ, diz que o projeto ainda geraria benefícios ecológicos maiores, uma vez que os futuros reservatórios estariam alinhados com o terreno natural da região, embora distantes o suficiente das áreas residenciais para evitar alagamentos.
- Seriam criados nessa área parques longitudinais em todos os canais de acesso ao Rio Morto, além do canal principal, para que funcionassem como faixas verdes de conexão com outras áreas ambientais, como os parques da Pedra Branca e Chico Mendes - explica Miguez.
O estudo começou em 2014, quando os pesquisadores se debruçaram sobre a falta de planejamento para os bairros de Vargem Grande, Vargem Pequena e Recreio. O boom imobiliário e a infraestrutura implantada para a Olímpiada, segundo Miguez, já demonstravam que haveria uma ocupação crescente da área.
Ele explica que as bacias hidrográficas que cercam os bairros já sofrem com inundações. Como a área de baixada é cercada por montanhas, como as do Parque da Pedra Branca, e as praias da Macumba e de Grumari sofrem com a altas das marés, o pesquisador prevê que a continuidade acelerada de urbanização na região, sem planejamento, demandará intervenções de alto custo futuramente, além de causar problemas ambientais.
- Um caso emblemático aconteceu no Museu Casa do Pontal. Ele começou a ser ladeado por empreendimentos imobiliários construídos em uma cota de terreno mais alta, já devido à possibilidade de cheias, o que o transformou num reservatório de escoamento: toda vez que chovia, recebia a água dos vizinhos - exemplifica Miguez, referindo-se ao centro cultural que, após uma série de inundações, está se transferindo do Recreio para a Barra.
A situação que ele descreve é parecida com a enfrentada corriqueiramente por Antônio Aurélio da Silva, morador de Vargem Grande há 30 anos. Ele vive às margens do Rio Morto, na comunidade Beira-Rio, uma ocupação irregular que, em suas próprias palavras, não para de crescer.
- De uns tempos para cá, surgiram uns condomínios em terrenos mais altos. Se a gente já tinha problema com enchente, imagina agora que a água que vem deles escorre em cima da gente? - indaga Silva.
Miguez considera que as propostas existentes, tanto a do PEU como a da Luos, têm como base modelos que já não condizem com a realidadde das Vargens e do Recreio. Ele conta que chegou a apresentar o estudo à Rio-Águas em 2015, quando havia perspectiva de financiamento de uma entidade espanhola para viabilizá-lo, o que não se concretizou.
A prefeitura diz que está aberta a aprimorar o plano de ocupação das Vargens, inclusive considerando estudos de outros órgãos e acadêmicos.
A nova Lei de Uso e Ocupação do Solo do Município (Luos) foi encaminhada à Câmara dos Vereadores em fevereiro. A lei estabelece diretrizes de uso e ocupação e o zoneamento em toda a cidade, o que, na prática, suplanta o Projeto de Lei (PLC) nº 140/2015, que versa sobre o PEU das Vargens e a OUC, uma tentativa de ordenar as Vargens por meio de uma parceria público-privada.
A nova lei de uso do solo urbano modifica de três para seis o número de macrozonas da cidade do Rio de Janeiro, que por sua vez seriam novamente divididas em zonas e subzonas. Além disso, a proposta visa a regular contrapartidas para novas construções. Nas Vargens, por exemplo, a edificação de novos condomínios seria condicionada a melhorias na infraestrutura local, como asfaltamento e construção de escolas e parques.
A primeira tentativa de ordenamento urbano das Vargens foi aprovada em 2004, quando, devido a um impasse entre a prefeitura e a Câmara, ficaram em vigor duas legislações distintas. Somente em 2009 a situação mudou, com a edição de um novo PEU que atendeu principalmente às intervenções olímpicas e criou parâmetros para a construção de empreendimentos na área: dependendo da região, o gabarito máximo de um edifício poderia variar entre dois e 18 andares.
As mudanças turbinariam ainda mais a malha imobiliária da região, o que gerou reclamações dos moradores e fez a prefeitura recuar, em 2013, e criar uma Área de Especial Interesse Ambiental (Aeia) para os bairros de Vargem Grande, Vargem Pequena, Camorim e trechos da Barra e do Recreio. A medida suspendeu os processos para concessão de novas licenças com base nas regras do PEU. Em 2015, a prefeitura elaborou um novo projeto para urbanizar a área das Vargens, que resultou no PLC 140/2015.
O projeto da OUC, elaborado pelas construtoras Queiroz Galvão e Odebrecht a um custo de R$ 12 milhões e parte do PLC 140, prevê a construção de uma linha de BRT (TransVargens), a utilização do transporte aquaviário por meio dos canais e a ampliação das redes de água e esgoto, em 260 e 460 quilômetros, respectivamente, em 35 anos. Além disso, seriam criados 1,5 milhão de metros quadrados de parques lineares, com desenhos inspirados no Parque Madureira, e mais 650 mil metros quadrados divididos em quatro parques centrais.
Membro da Associação de Moradores e Amigos de Vargem Grande (Amavag), Rogério Oliveira diz que a proposta não reflete a situação dos bairros, onde grande parte dos terrenos está em ruas sem aceite, embora paguem IPTU como se fossem aptos a ter empreendimentos. E que a Luos também não seria boa para a região.
- O grande vilão no meu entendimento são as contrapartidas, orientadas para os grandes empreendedores. Não há benefícios para os pequenos. Os condomínios clandestinos são a porta de fuga diante desse cenário - argumenta Rogério.
O estudo da Coppe simulou três cenários possíveis para a região: o primeiro é o mais improvável e supõe que não haveria uma corrida imobiliária a médio prazo, e, portanto, eliminaria a necessidade de haver intervenções. Um segundo trata da urbanização prevista pelo atual projeto do PEU, que propõe que a área seja ocupada por lotes grandes, de até cinco mil metros quadrados, tamanho que os pesquisadores acreditam não corresponder à realidade, ao se levar em conta o ritmo da ocupação urbana atual. Um outro analisa o que acontecerá se não houver planejamento, considerando dois tipos de ocupações: as formais, como sítios e condomínios; e as informais, como as favelas.
- Estamos sugerindo que a urbanização ocorra em lotes menores, como de fato tem acontecido nas Vargens. Terrenos de meio hectare, como prevê a prefeitura, são muito pouco prováveis. A pressão imobiliária já existe. De um lado, os condomínios avançam, e do outro as favelas acompanham as encostas do Parque da Pedra Branca. O que podemos dizer é que as previsões, se não houver planejamento, são catastróficas - explica.
O estudo prevê que, em 25 ou 30 anos, considerando-se que o processo de urbanização das Vargens siga padrões semelhantes à ocupação que hoje se observa na orla, a área de estudo deverá ter cerca de 31 mil pessoas sofrendo com alagamentos nas ruas do entorno e cerca de 5.200 pessoas afetadas por problemas como o alagamento de suas casas ou de seus prédios. Para se ter uma ideia da dimensão do problema, em 2010, de acordo com o último recenseamento, 43.259 pessoas viviam no Camorim, em Vargem Grande e em Vargem Pequena.
Por outro lado, em duas ou três décadas, caso o poder público adote na área um padrão de urbanização que estabeleça espaços prioritários para o acúmulo temporário e amortecimento das águas do sistema de drenagem, cerca de 32 mil pessoas poderão ocupar os loteamentos propostos sem o risco de terem suas casas inundadas, diz a Coppe. A implantação do projeto teria um custo de R$ 53 milhões.
Morador da região, o arquiteto Canagé Vilhena diz que o estudo da Coppe precisa ser mais robusto, abrangendo outras áreas das Vargens, para que haja uma solução integrada. Ele diz que a OUC, em conjunto com o PEU, está com os dias contados caso a Luos seja aprovada.
- A prefeitura está empenhada em aprovar a nova lei de ordenamento do solo para que funcione como norma geral. A melhor maneira de se planejar seria a criação de um plano regional para cada região administrativa, com participação popular em todas as fases - defende.
No ano passado, moradores de Vargem Grande criaram o Plano Popular das Vargens, uma contraproposta ao projeto da prefeitura. As principais premissas são a luta contra remoções e contra o que classificam como privatização do bairro, a defesa do setor H (o entorno da Pedra Branca) e o estímulo à participação popular.
Uma das articuladoras do Plano Popular, Silvia Baptista continua ouvindo especialistas. Na semana passada, houve um encontro com arquitetos e engenheiros do IAB para discutir o PLC que trata sobre o PEU e a Luos.
- Ambos os projetos ignoram os moradores. A Luos consegue ser ainda pior, porque propõe um adensamento para os bairros contrário ao que está previsto no Plano Diretor - diz Silvia.