Anúncios de fabricação em território nacional pelas montadoras BYD, GWM e Stellantis têm movimentado o mercado. Por outro lado, infraestrutura, falta de legislação e tecnologia ainda são obstáculos.
Mesmo com o avanço de mais de 1.600% em vendas nos últimos cinco anos, a popularização de carros eletrificados continua distante de se tornar realidade no Brasil. É o que afirmam especialistas ouvidos pelo g1, que apontam uma série de desafios para o setor.
Estão no grupo de veículos eletrificados os elétricos híbridos (HEV), os elétricos híbridos plug-in (PHEV) e os elétricos 100% a bateria (BEV), conforme classificação da Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE). Entenda as diferenças.
Um levantamento elaborado pela JATO do Brasil, empresa de inteligência global de negócios automotivos, ajuda a mensurar esse mercado no país.
O estudo aponta que, entre os carros de passeio, os eletrificados correspondem a apenas 5% do total de 1.373.188 veículos vendidos em território nacional em 2023 (veja arte mais abaixo). Quando considerados apenas os 100% elétricos, o percentual é ainda menor, de 0,7%.
Cenário bem distinto em comparação com a Europa, os Estados Unidos e, principalmente, a China, que tem avançado a passos largos. O gigante asiático é líder do mercado mundial de elétricos, com 10,6 milhões de veículos vendidos entre 2020 e o terceiro trimestre de 2023.
No Brasil, os anúncios de montadoras sobre o início de fabricação de carros eletrificados em território nacional já têm agitado o setor — um movimento que deve se intensificar a partir de 2024.
As chinesas BYD (Build Your Dreams) e GWM (Great Wall Motors), além da Stellantis — dona das marcas Fiat, Jeep, Peugeot, Citroën e RAM —, estão entre as empresas que devem começar a produzir no país entre o ano que vem e 2025. Atualmente, todos os modelos 100% elétricos no Brasil são importados.
Apesar dos avanços, especialistas ouvidos pelo g1 reforçam que, nos próximos anos, os elétricos ainda não deverão ser uma realidade para grande parte da população brasileira.
A expectativa é que o cenário comece a melhorar até o fim da década, ao passo que mercado enfrenta travas importantes, como:
- Preços dos veículos;
- Infraestrutura e investimentos;
- Falta de legislação — e de prioridade no país;
- Autonomia limitada.
Preços dos elétricos
O interesse pelos veículos eletrificados não é um problema. O mercado nacional já se mostra promissor, já que 40% dos brasileiros consideram comprar um carro híbrido ou elétrico, conforme pesquisa realizada pela OLX em outubro.
Mas existem barreiras que pesam para que as vendas sejam muito baixas no Brasil. A principal é o alto custo em comparação com os veículos a combustão (aqueles que utilizam gasolina ou álcool).
Mesmo tão distantes, os preços dos eletrificados já vêm caindo nos últimos anos — outro movimento que deve se intensificar daqui para frente, assim que tiver início a produção em território nacional.
Com valores mais convidativos, o caminho natural é que as vendas melhorem. Romio pondera, no entanto, que os elétricos vendidos a R$ 150 mil, por exemplo, são similares aos veículos convencionais a combustão, pouco sofisticados, que custam cerca de R$ 80 mil.
O Caoa Chery iCar, 100% elétrico, é o modelo o mais barato da categoria no país, e passou a custar R$ 119.990,00 depois de uma redução de valor em agosto.
Ainda assim, o custo é 88% maior em comparação com o Renault Kwid, por exemplo, um dos mais baratos a combustão entre os zero km do mercado — encontrado pela reportagem do g1 a R$ 63.990,00.
Ou seja, o consumidor desembolsaria quase o dobro do preço por um veículo elétrico que oferece condições semelhantes a um modelo mais popular.
"Nem todo mundo está disposto a pagar o dobro do preço em um carro convencional só porque ele é elétrico", continua Romio. "Então, essa é a primeira barreira no mercado."
Por que os preços são tão altos no Brasil?
Por natureza, os elétricos reúnem muitos equipamentos com tecnologia mais recente e sofisticada, o que ajuda a elevar seus custos. Além disso, utilizam um número maior de semicondutores — peças utilizadas pela indústria automobilística e que têm enfrentado escassez global nos últimos tempos.
"Ainda deve entrar na conta o preço da bateria que, apesar de ter caído nos últimos anos, ainda é muito alto", diz Milad Kalume Neto, da JATO do Brasil. Em muitos casos, diz Milad, pode custar até mais do que o próprio carro.
Também exerce influência sobre os valores a cotação do dólar frente ao real, em especial porque, atualmente, o mercado brasileiro é formado por elétricos importados.
A China, que é referência e tem investido pesado no setor, conseguiu reduzir pela metade os preços de veículos elétricos ao longo dos últimos 10 anos. O valor médio caiu de 41,8 mil euros em 2011 para 22,1 mil euros em 2021. Isso coloca o elétrico chinês mais barato do que nos EUA e na Europa, segundo levantamento da JATO.
Infraestrutura e falta de investimentos
Com frota bastante reduzida, o número de pontos de recarga para elétricos ainda é bastante baixo no Brasil — especialmente fora dos grandes centros comerciais.
De acordo com levantamento da JATO, são cerca de 3 mil postos de carregamento, concentrados nas capitais e em algumas cidades com mais de um milhão de habitantes. Isso representa, excluindo a área da Amazônia, 0,00058 carregador por km².
Para efeito de comparação, a Holanda, líder em infraestrutura de carregamento na Europa, possui 2,17405 carregadores por km² — ou seja, mais do que dois carregadores a cada km². Ao todo, são mais de 90 mil pontos de recarga no país.
Verdade seja dita que a área dos países é incomparável, assim como a urbanização do território. O Brasil tem mais de 8,5 milhões de km², segundo os dados mais recentes do IBGE. Já a Holanda tem apenas 42 mil km².
De acordo com Milad, o Brasil ainda é muito dependente da iniciativa privada, e as próprias importadoras são responsáveis pelos investimentos em pontos de recarga.
Falta de legislação e de prioridade no país
A falta de legislação para o setor é mais um entrave que impede que haja maior volume de investimentos pelas empresas, aponta Milad Kalume.
Segundo o especialista, a iniciativa privada não investe todo o potencial no país por estar diante de um mercado não regulamentado. "Você vai investir em uma incerteza? Investidor não gosta disso", diz.
Um exemplo clássico: o imposto sobre importação de veículos é zerado para os elétricos. Recentemente, entretanto, o governo anunciou que irá retomar o imposto para "estimular indústria nacional". Entenda.
Há ainda as discussões sobre incentivos nacionais a esses modelos. Mas, por enquanto, não há ações federais concretas, e estados adotam medidas diferentes relacionadas ao mercado.
Alguns, como no Rio Grande do Norte, têm isenção completa de IPVA (Imposto Sobre a Propriedade de Veículos Automotores). Em outros casos, como o Rio de Janeiro, têm alíquota reduzida do imposto.
"É uma questão legislativa e de interesse de cada um dos estados sobre o tema. Tem assembleias legislativas olhando com maior atenção para o assunto, e outras, não", diz Milad.
O professor Renato Romio, do IMT, também afirma que a migração para carros elétricos ainda não tem sido tratada como prioridade no Brasil.
Ele destaca que o país tem um "excesso de soluções" por sua capacidade de produção de energia limpa, como o etanol. E que, por isso, empenha menos esforços do que a Europa, que possui uma matriz mais "suja", a partir de combustíveis fósseis.
Por esse motivo, explica Romio, os carros híbridos acabam sendo mais vantajosos no Brasil do que os 100% elétricos. Na prática, os híbridos também são mais baratos — já que a bateria eleva os preços dos elétricos — e usam etanol, combustível que emite menos gás carbônico.
"No Brasil, você tem essa solução. Na Europa, não. Lá, o veículo híbrido vai ser movido a combustível fóssil", continua.
Nesse contexto, além dos esforços dos europeus, os chineses são destaque de investimentos no setor, com bilhões de dólares em isenções fiscais para os desenvolvimento de elétricos.
"O que falta agora é o governo brasileiro falar: 'nós vamos adotar esse caminho e seguir dessa forma'. Quando deixa de fazer isso, entram muitos lobbies no meio. As coisas vão se misturando, e cada um puxa a corda para o seu lado", conclui Romio.
Autonomia limitada
A infraestrutura de pontos de abastecimento é determinante para a viabilidade dos veículos 100% elétricos. Em caso de viagens mais longas, por exemplo, a autonomia dos veículos movidos a eletricidade é diretamente comprometida pela falta de pontos de recarga.
A questão também esbarra na qualidade e na duração da bateria, a depender do modelo, e no processo de carregamento do veículo. Além dos pontos instalados em estacionamentos de mercados e shoppings, entre outros, há a possibilidade de carregar em casa.
O ideal, dizem especialistas, é que seja utilizada uma tomada semi-industrial, que precisa ser instalada especificamente para o uso. O abastecimento com esse tipo de equipamento leva, em média, nove horas. Leia mais aqui.
Enquanto isso, as empresas seguem em processo de evolução tecnológica por baterias mais duráveis e resistentes.
O que esperar pela frente
A evolução do mercado de eletrificados ainda vai depender de aspectos como produção, importação, avanço regulatório e agenda política. Mas há estimativas.
Milad Neto, da JATO do Brasil, projeta que até 2029 o número de vendas de elétricos e híbridos avance dos atuais 5% para até 10% do total de veículos de passeio em território nacional.
"Devemos ter um mercado ascendente, chegando a 9% ou 10% pelos próximos cinco ou seis anos, e devemos ter uma estabilidade muito grande", diz. Ele prevê que o mercado alcance 320 mil veículos, aproximadamente. "Depois, teremos um novo salto positivo", diz.
Romio, do IMT, acredita que a frota de eletrificados "vai demorar muito" para ter números significativos. Ele ressalta que até o meio deste século ainda teremos veículos a combustão sendo produzidos, "e eles vão conviver com os elétricos".
"O elétrico, mesmo que se torne mais acessível — e esse momento vai chegar —, vai esbarrar em problemas de ponto de recarga e de desvalorização do automóvel. Então, durante muito tempo, vai continuar sendo um 'segundo carro' da família", conclui.
André Catto, g1, 23/nov