sexta-feira, 27 de abril de 2018

Crise obriga famílias a morarem juntas


A crise econômica foi tão profunda que forçou uma mudança nas condições de moradia da população em 2017. Dados divulgados ontem pelo IBGE mostram que, com o desemprego e a renda reduzida, a solução foi recorrer à família e aos amigos. Cresceu a quantidade de lares com dois, três ou quatro moradores e aumentou o número de brasileiros que passaram a viver em imóveis cedidos por terceiros, ou seja, de favor. Outro reflexo da recessão foi a redução dos domicílios onde o morador é o proprietário. Na cidade do Rio, a queda foi de 9%. Já o número de famílias cariocas vivendo em imóvel alugado cresceu em 90 mil no ano passado, uma alta de 18% em relação a 2016.

Morar com mais gente e dividir as contas foi a saída encontrada por muitas pessoas. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), no ano passado foram mais 861 mil domicílios ocupados por dois a quatro moradores, totalizando 50,3 milhões de unidades. Enquanto isso, houve uma redução de 194 mil, para 10,5 milhões, no número de lares ocupados por só uma pessoa.

- O crescimento do número de pessoas nos domicílios tem a ver com diminuir despesa e juntar renda devido ao desemprego, que atingiu níveis recordes no ano passado. Muitas pessoas não puderam mais pagar aluguel, devolveram seus imóveis e se juntaram a outra família. Quando se está no mesmo domicílio, há economia de escala, porque diminui o número de contas e o pagamento das que sobram é dividido - analisa a economista Ana Amélia Camarano, pesquisadora do Ipea. 

SEIS MILHÕES MORAM DE FAVOR 

Ela lembra que, no começo dos anos 2000, houve um movimento semelhante no país, porque o desemprego estava alto entre os jovens e muitos dos que moravam sozinhos voltaram a viver na casa dos pais.

- Morar só é um status de riqueza que se perde em tempos de crise - complementa Marcelo Neri, diretor da FGV Social e ex-presidente do Ipea, lembrando que o número de domicílios com apenas um morador vinha numa crescente desde o fim da década passada.

Voltar para a casa da família foi a alternativa encontrada por Ana Carolina de Sousa, de 21 anos e moradora de Teresina, para reforçar o orçamento. Ela e o marido, que trabalha em um supermercado, saíram da casa onde moravam com os dois filhos e foram viver no sítio dos avós dela, onde cultivam frutas e vendem as polpas processadas para produtores de sucos e sorveterias.

Os avós, Serapião José de Sousa, de 90 anos, e Vitória Cardoso de Melo, de 65 anos, vivem de seus proventos, que somam pouco mais de dois salários mínimos, mas abrigam em casa, em "puxadinhos" construídos recentemente, seis filhos, 20 netos e seis bisnetos, além de quatro noras e genros. Filha do casal, Maria do Socorro, de 40 anos, também voltou para casa dos pais recentemente, depois que o marido ficou desempregado, e eles tiveram que entregar o apartamento onde moraram por 14 anos com os quatro filhos.

- Voltei para a casa de meus pais porque poderia aumentar minha renda com a venda das frutas e ainda criar galinhas e patos no quintal. Além disso, na família, todos se protegem quando alguém está com dificuldades financeiras - comenta Maria, que também trabalha como costureira.

A pesquisa do IBGE divulgada ontem mostrou também que os lares estabelecidos em imóveis emprestados cresceram 7% no ano passado. Seis milhões de pessoas passaram a viver de favor, ficando responsáveis normalmente apenas pelas taxas. São imóveis de parentes ou amigos ou cedidos por empregadores.

O levantamento revelou ainda que os lares em que o imóvel é próprio tiveram um leve recuo, de 51,33 milhões para 51,29 milhões. Também caiu, de 4,11 milhões em 2016 para 3,9 milhões em 2017, o número de domicílios próprios, mas que ainda estão sendo pagos, o que reflete, segundo Neri, as dificuldades dos financiamentos imobiliários, seja pela queda na renda ou pelo acesso ao crédito.

- É um sinal de menos financiamentos, até porque as condições não estavam boas, nem de renda nem de crédito. Dados de anos anteriores mostravam que a moradia passava por um boom,

mas a crise teve efeitos sobre os financiamentos - diz Neri.

O número total de famílias expandiu 0,8%, ou mais 550 mil domicílios, para 69,8 milhões em 2017. Deste total, 86,6% viviam em casas e 13,2%, em apartamentos. 

RIO NA CONTRAMÃO DE OUTRAS CAPITAIS

Na contramão das principais capitais do país, o número de lares caiu na cidade do Rio no ano passado, em relação a 2016, de 2,51 milhões para 2,49 milhões - recuo de 0,75% ou menos 19 mil moradias. O grupo que mais encolheu foi o de famílias com imóvel próprio. Eram 76,6% do total de domicílios na capital em 2016 e caíram para 71%, redução de 9%.

Já o número de famílias cariocas vivendo em imóvel alugado cresceu em 90 mil no ano passado, alta de 18% em relação a 2016. Representavam 19,3% dos lares cariocas em 2016 e 23,1% em 2017.

Neri avalia, no entanto, que, quando os dados de 2017 são observados por trimestre, o último do ano e o primeiro de 2018 já trazem sinais da retomada.

- As crises brasileiras, em geral, são intensas e de curta duração. Mas essa foi intensa e de longa duração. Já observamos uma estabilidade no número médio de moradores por domicílio e a renda voltou a subir, assim como a massa de rendimentos. São sinais de reversão dessa crise melhores do que os indicados pelo Produto Interno Bruto.

Quanto ao saneamento, a Pnad mostra que o serviço de coleta de esgoto no Brasil mal conseguiu acompanhar o crescimento do número de famílias no ano passado. Apesar de o serviço ter alcançado mais 400 mil lares, no mesmo período o país ganhou um total de 550 mil domicílios. Com isso, a parcela de famílias com o serviço ficou estagnada em 66% do total de lares brasileiros.

- A cobertura de coleta de esgoto está estabilizada numa situação pouco confortável. Há ainda um terço da população sem esse serviço. E o pior é que estar conectado à rede de coleta não significa que há tratamento. Sabemos que uma menor parte do esgoto coletado é tratada - avalia Neri.

A parcela de lares com coleta diária de lixo teve leve expansão, de 82,6% em 2016 para 82,9% do total de domicílios no ano passado. E o número de famílias abastecidas com água canalizada caiu de 87,3% para 86,7%. Segundo o IBGE, essa queda é resultado do racionamento de água que vem ocorrendo no Distrito Federal desde o início do ano passado, devido a fatores como escassez de chuvas e falta de investimentos.

MAIS BRASILEIROS PASSAM A USAR LENHA E CARVÃO

A alta do preço do gás de botijão no ano passado levou mais brasileiros a usarem lenha e carvão para cozinhar. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) divulgada ontem pelo IBGE mostra que mais 1,2 milhão de brasileiros passou a usar mais esse tipo de combustível para cozinhar, atingindo 17,6% dos lares do país.

Esse aumento foi concentrado sobretudo no Nordeste. Na região, mais 400 mil domicílios começaram a usar também a lenha e o carvão para preparar alimentos, num total de 24,1% das residências da região.

No ano passado, o preço do gás subiu 16%, mais que o quíntuplo da inflação registrada. A alta foi provocada principalmente pela nova metodologia de reajuste adotada pela Petrobras, que passou a repassar com mais frequência as variações, para cima ou para baixo, no custo do produto.

No Maranhão, 44,9% das famílias usam carvão ou lenha para cozinhar. No Piauí, essa parcela chega a 32,9%.

O carvão e a lenha, na maioria das vezes, são usados em complemento ao gás de botijão, que, segundo o levantamento, é adotado por 98,4% das famílias brasileiras.



O Globo, Daiana Costa e Efrém Ribeiro, 27/abr