terça-feira, 21 de abril de 2020

Pandemia faz Rio repensar sua ocupação


"Não havia nessa ocasião uma só família, por assim dizer, que não tivesse dores e lágrimas, uma rua que não fosse um hospital." Assim o médico José Pereira Rego, o Barão do Lavradio, descreveu o flagelo da febre amarela no Rio em 1850, que deixou 4.160 mortos. Era a primeira epidemia em larga escala de sucessivos abalos que assolariam a então capital do Império, que, até 1870, contabilizou outras 39 crises, com surtos variados, da cólera ao sarampo.

A crença de que a topografia da cidade e suas péssimas condições sanitárias favoreciam as doenças esteve entre as justificativas para obras e reformas urbanas - a mais conhecida delas o "bota-abaixo" de Pereira Passos, a partir de 1903 - que dão os traços da metrópole atual. Mas que, segundo arquitetos e urbanistas, pouco ou nada ajudaram a solucionar problemas que perduram e deixam os cariocas ainda mais aflitos diante do coronavírus. 

A questão da moradia popular, dizem os especialistas, é um desses dilemas que exigem soluções num mundo pós-pandemia. E nesse futuro com mudanças, as casas de favelas devem ser postas no centro de projetos de urbanização, afirma o arquiteto e urbanista Washington Fajardo. Para ele, o temor de como a Covid-19 avançará em áreas com habitações sem saneamento nem ventilação adequada corrobora a urgência de retomar o foco nas comunidades, como ocorreu nos anos 1990 com o programa Favela-Bairro. 

- A diferença é que deveria ser um amplo programa habitacional, com investimento público, subsídio e microcrédito para reformas nas moradias. Já temos uma lei, de 2008, para assessoria técnica e obras nas residências das pessoas. No entanto, ações do tipo são hoje melhor realizadas pelo terceiro setor do que pelos governos - destaca Fajardo.

Ele ressalta que a ideia não significa uma visão "romantizada" das favelas. O urbanista defende medidas para a retirada de domicílios de áreas de risco e contenção do crescimento desordenado das comunidades. Ao passo que, com vista a uma ocupação mais racional da cidade, aponta como saídas a construção de habitações populares nos bairros e um censo que revele quantos são e onde estão, por exemplo, os imóveis ociosos.

- É uma vergonha termos uma área como o Porto Maravilha até agora sem moradias sociais e ruas como a do Livramento num processo de precarização - diz Fajardo.- Estudos indicam, inclusive, que há um aumento no número de cortiços no Centro do Rio

PACTO POR ÁGUA E ESGOTO

Justamente essas habitações coletivas tinham sido um dos principais alvos do bota-abaixo no início do século XX. Inspirado nas intervenções de Georges Haussmann em Paris, o prefeito Pereira Passos buscava uma europeização do antigo Distrito Federal. "O Rio civiliza-se" era o lema da época, quando foram alargadas e abertas avenidas como a Beira-Mar e a Central (atual Rio Branco). Eram transformações, no entanto, que também se legitimavam em argumentos higienistas, numa cidade acometida por epidemias de febre amarela, peste bubônica e varíola. 

Pesquisadores apontam que, na verdade, aconteceram duas reformas paralelas: a do prefeito e outra, federal, do governo Rodrigues Alves, que modernizou o porto, implantou um programa de saneamento e levou a cabo ações de saúde comandadas pelo médico sanitarista Oswaldo Cruz. Uma delas, a imunização obrigatória contra a varíola, em 1904, gerou tanta polêmica que culminou na Revolta da Vacina. Enquanto toda essa metamorfose era empreendida, porém, a derrubada de cortiços e estalagens expulsava as camadas mais pobres do Centro em direção aos subúrbios e a morros em processo de ocupação, como o da Providência e o São Carlos. 

Salvo poucas vilas operárias, parcamente se pensou em alternativas e condições de moradia para essa população. Erro repetido ao longo da história do Rio que, para o arquiteto e urbanista Sérgio Magalhães, não pode ser reproduzido quando a pandemia da Covid-19 passar.

Ele lembra que, com a expansão da cidade a cargo, muitas vezes, dos esforços apenas das famílias, chegou-se à situação atual: moradias sem abastecimento de água regular ou em emaranhados tão insalubres onde doenças como a tuberculose ainda fazem vítimas. 

- Espero que, depois do coronavírus, o rumo da História possa mudar de direção em busca por equidade. Se o Brasil for minimamente inteligente, após a pandemia vai criar empregos na melhoria das cidades, como forma até de recuperar a economia. Deve ser feito um pacto pela universalização da água e do saneamento básico - afirma Magalhães, apostando que o assunto terá protagonismo no Congresso Mundial de Arquitetura do Rio, adiado para 2021.

TAREFA CIVILIZATÓRIA

Coordenador do Observatório das Metrópoles do Ippur/UFRJ, Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro também tem esperança de que o Rio saia da pandemia melhor para todos.

- Não há solução que não seja coletiva. Os problemas da favela são de todos. E construir um habitat popular é uma questão não só ética e moral, mas uma tarefa civilizatória da sociedade - afirma, lembrando outro período histórico no qual uma necessidade semelhante se impôs. -Países europeus e os Estados Unidos saíram diferentes da Segunda Guerra Mundial, com políticas de proteção social e um sistema público de serviços.



O Globo, Rafael Galdo, 19/abr