Um homem caminha solitário no meio de uma ampla avenida repleta de armazéns de carga. Perto dele, circulam dois bondes com uns poucos passageiros. A imagem foi clicada no início do século XX, na então recém-construída Avenida do Cais, depois rebatizada de Rodrigues Alves. Em outro registro, um barquinho se aproxima de uma pequena enseada, rumo ao antigo dique da Saúde, numa área que seria aterrada. As duas imagens fazem parte de um conjunto de cem fotos que retratam o momento de transformações pelo qual a região passava na época. Foram encontradas no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro e viraram tema de livro, justamente quando a Zona Portuária, cerca de um século depois, vive um novo processo de remodelação e modernização.
São registros em preto e branco, a maioria no formato de 24cm x 30cm, com flagrantes das obras de modernização do Porto do Rio, de 1904 a 1913. As fotos mostram as antigas oficinas e os armazéns de madeira que ficavam instalados na beira do mar, os diques, as muralhas, as máquinas usadas no aterro da região - que antes era repleta de pequenas enseadas -, assim como os trabalhadores da época. O material integra o "Álbum das obras do Porto do Rio de Janeiro", feito por encomenda do governo do estado, como um documento das intervenções capitaneadas pelo engenheiro Francisco de Paula Bicalho entre 1904 e 1910.
- Hoje se fala muito das transformações pelas quais a região está passando. Mas essas fotos nos fazem lembrar que o Porto que está lá hoje já representou o moderno. Quando ele foi inaugurado e começou a funcionar, representou uma transformação urbanística e uma grande mudança em termos de infraestrutura portuária. Houve mudança, inclusive, nas relações de trabalho. Antes, cada trapiche tinha um dono, cada barquinho tinha um empregado. Com o Porto, o barco que atravessa os oceanos passa a encostar diretamente no cais. Então, esse barquinho intermediário deixa de existir. Vemos essa evolução nas imagens do álbum - explica o diretor-geral do Arquivo Público, Paulo Knauss.
As fotografias encontradas no álbum foram restauradas e reencadernadas na década de 90. E recentemente acabaram reunidas no livro "Um Porto para o Rio: imagens e memórias de um álbum centenário", da historiadora Maria Inez Turazzi, com colaboração de Maria Teresa Villela Bandeira de Mello. Quando o álbum foi encontrado, não havia nenhuma identificação do nome do fotógrafo, mas, durante a pesquisa, foram achadas cópias das fotos em outras publicações, com o nome de Emygdio Ribeiro. A equipe que produziu o livro descobriu que um outro álbum, com 150 fotos, está na Companhia Docas.
- As imagens estavam num álbum com legendas, que ajudam a montar uma narrativa visual da obras. Era uma publicação institucional, com o objetivo de documentar o trabalho de engenharia - conta Paulo Knauss.
Numa das fotos, por exemplo, vê-se que a Igreja de São Francisco da Prainha, na Saúde, ficava às margens de uma... prainha - hoje aterrada. Outras imagens mostram a pedreira que existia no bairro da Saúde e as Docas Dom Pedro II, que hoje abrigam o galpão da Ação da Cidadania. Foi o primeiro prédio construído pela Companhia Docas do Rio, em 1870, para armazenar grãos trazidos por navios que aportavam na Baía de Guanabara.
Há, ainda, fotografias da Praça Mauá e dezenas de flagrantes de trabalhadores, tanto dos que viviam do transporte de carga, quanto dos operários que ajudaram a fazer os aterros e a construir o cais e os armazéns da futura Avenida Rodrigues Alves.
- As imagens, além de registrarem o dia a dia da grande transformação vivida por aquela área no começo do século XX, também nos lembram o quanto as fotografias de obras de engenharia, produzidas com uma nítida intenção de memória, têm sido uma herança fantástica para as sucessivas gerações. Elas provocam uma reflexão sobre as expectativas de cada época em relação ao espaço público e o que vem a ser o patrimônio e o progresso de uma cidade - diz a historiadora Maria Inez Turazzi.
Para a pesquisadora, as fotos são como peças de uma gigantesca engrenagem.
- De modo geral, elas se assemelham a outras fotografias de obras de engenharia da época, nas quais podemos identificar as diferentes ocupações (operários, feitores, engenheiros) através dos gestos e das vestimentas de cada um - completa.
O material permite também recordar como era o sistema de abastecimento da cidade. O historiador Sérgio Lamarão, autor da dissertação de mestrado "Dos trapiches ao Porto", ressalta que inicialmente a região de embarque e desembarque de cargas ficava nas imediações de onde hoje está a Praça Quinze, que também sofreu pequenos aterros. A partir do século XVIII, com o boom da mineração e o aumento da chegada de navios de Portugal, explica Lamarão, começaram a se formar os trapiches na região onde hoje fica a Zona Portuária.
- Nos anos 20, 30, 40 e 50 do século XIX, vemos que o litoral era diferente. Ele era pontilhado de trapiches, alguns maiores e outros menores. Não se sabe muita coisa sobre seus proprietários, mas tudo nos leva a crer que eram empresários ligados ao Estado imperial, comerciantes com investimentos em outras áreas que também exploravam aquela atividade. A partir da segunda metade do século XIX, com a chegada dos navios a vapor, os trapiches não dão mais conta do movimento portuário. Pode-se especular que a reforma do Porto só ocorreria no começo do século XX devido, em parte, ao poder de pressão desse grupo - conta Lamarão, pesquisador visitante do Museu de Astronomia e Ciências Afins.