quinta-feira, 3 de maio de 2018

Invasões no Rio não têm levantamento


Ao ver pela TV o prédio que pegou fogo e desabou na madrugada de anteontem no Centro de São Paulo, a desempregada Jéssica da Conceição, de 24 anos, não teve como evitar uma comparação de sua situação com a das vítimas da tragédia na capital paulista. Ela mora em imóveis invadidos no Centro do Rio há oito anos, desde que deixou a casa de uma avó no bairro do Fonseca, em Niterói. Cinco meses atrás, com dois filhos pequenos, saiu com outras 15 famílias de um casarão antigo na Praça da República que estava prestes a desabar. Jéssica se instalou com Lucas, de 5 anos, e Eluara, de 1, num cômodo de dez metros quadrados na Rua Frei Caneca - também um casarão antigo invadido, mas em condições um pouco melhores.

- Não temos para onde ir. Peço a Deus que proteja meus filhos. Quando vi aquele prédio caindo em São Paulo, chorei muito. Doeu meu coração, senti que poderia ter sido comigo. Tenho vontade de trabalhar, mas não consigo emprego. Queria muito ter uma casa de verdade - disse.

A situação de Jéssica é a mesma de milhares de moradores de áreas invadidas no Rio, e reflete a falta de políticas de habitação da cidade. A administração municipal não tem sequer uma estimativa do total de imóveis ocupados. Ontem, O GLOBO percorreu ruas da região do Centro e constatou que há pelo menos 12 casarões ou prédios abandonados ocupados por famílias, muitos deles em condições tão precárias quanto o de São Paulo.

- A regulamentação do uso do solo compete ao município. Há uma omissão de políticas habitacionais por parte do poder público em todas as esferas. O Minha Casa Minha Vida (do governo federal) não é política habitacional, porque constrói imóveis com baixa qualidade, em locais afastados de comércio, transportes e serviços públicos. Foram investidos no programa R$ 340 bilhões. Em um cálculo rápido, com esse valor poderíamos reformar 8.500 prédios como o que caiu em São Paulo - disse o arquiteto e urbanista Washington Fajardo, que foi subsecretário municipal de Patrimônio Cultural, Intervenção Urbana, Arquitetura e Design na gestão de Eduardo Paes. 

ENTRE RATOS E BARATAS 

O vendedor ambulante Genival Ferreira, de 60 anos, ex-vizinho de Jéssica, hoje mora sozinho em um imóvel abandonado na Praça da República. O casarão, que já foi um hotel, está em situação crítica: os poucos degraus de madeira que restam da escada, com pregos enferrujados aparentes, apodrecem. O cheiro de mofo predomina, e ratos, aranhas e baratas são visitantes frequentes. Não há eletricidade nem água. Os quartos não têm portas, e a maioria das paredes está rachada, assim como o teto. O chão, que treme com uma passada mais firme, está repleto de buracos.

- Não tenho medo de que o casarão caia, não me assusto à toa. Vendo água na Praça Tiradentes e não quero sair daqui porque é perto do meu trabalho - diz Genival, que mora no local desde que se separou da mulher, há 11 anos.

Na Avenida Mem de Sá, o quadro não é diferente: num sobrado de dois andares, onde vivem cerca de 20 pessoas, a fiação aparente expõe os moradores, boa parte crianças, a riscos.

- Gostaria de ter um lugar decente para morar. Pena que os governantes não são honestos com os pobres - diz a ambulante Adriana dos Santos, de 37 anos, que vive num cubículo de nove metros quadrados com quatro filhos.

O presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro, Jeferson Salazar, destaca que não existe um inventário sistematizado dos imóveis ocupados no Rio. Segundo ele, isso impede ações mais efetivas para diminuição do déficit habitacional no município.

- O poder público precisa ter um inventário desses imóveis, principalmente em áreas centrais, para dar uma utilização a eles. Não vemos autoridades fazerem nada para impedir que prédios fiquem vazios por anos a fio, sem cumprir sua função social.

Para Salazar, a ocupação de imóveis abandonados é entendida pelos desabrigados como única solução possível. Muitos imóveis pertencem à União, ao estado ou ao município. Mas, segundo ele, a responsabilidade inicial é da prefeitura.

- Obviamente, não dá para isentar os estados e a União de responsabilidade pela falta de uma política de habitação mais ampla, mas a primeira atribuição é dos municípios. 

VISTORIA, SÓ MEDIANTE SOLICITAÇÃO 

O arquiteto e urbanista Canagé Vilhena, ex-vice-presidente do Crea-RJ, diz que há uma dificuldade na fiscalização dos imóveis ocupados por parte da Defesa Civil do município:

- Em prédios abandonados pelo poder público federal, a situação é muito pior, pois eles não entram na agenda de fiscalização. A Defesa Civil só faz vistorias quando solicitada. Mas é dever da prefeitura desocupar prédios abandonados.

Em nota, a prefeitura do Rio informou que a Defesa Civil faz vistorias mediante solicitação, analisa os riscos e envia relatórios aos órgãos responsáveis, com o objetivo de notificar os proprietários a tomar as providências necessárias.

Segundo a prefeitura, há um esforço para regularização fundiária e habitação, por meio do programa Minha Casa Minha Vida, do governo federal. Há duas semanas, o município desocupou o antigo prédio do IBGE, na Mangueira, abandonado desde 2002. O edifício será implodido no dia 13 para construção de moradias populares.



O Globo, Natália Boere e Fábio Teixeira, 03/mai