terça-feira, 10 de setembro de 2013

Duplicação do Elevado do Joá será a maior obra da história da Geo-Rio

O trauma era recente, e as cobranças não cessavam. Os temporais de 1966 e 1967 deixaram mais de 300 mortos no Rio, e medidas urgentes eram necessárias. Sob forte pressão popular, o então governador da Guanabara, Negrão de Lima, notou que suas ações não estavam aparecendo como deveriam. Foi então que, em 1967, reclamou com um auxiliar: "Não estou vendo as obras!". A resposta de Raimundo e Paula Soares, secretário de Obras Públicas, veio imediatamente, e com tinta: foram pintados de branco todos os pilares recém-construídos nas encostas, que até hoje sustentam rochas gigantescas e fazem parte da paisagem.

O tempo comprova que a tinta era boa, mas a pintura, hoje proibida em novas obras por causa da poluição visual, foi só um detalhe em meio aos esforços de engenheiros escalados para uma missão desafiadora e pioneira: domar, em meados dos anos 1960, a rara formação geológica do Rio, dos morros que desmanchavam em temporais feito sorvete no calor, com rastros de destruição e morte. Esses profissionais formaram a primeira equipe do Instituto de Geotécnica, atual Geo-Rio, órgão criado por Negrão de Lima em 1966 logo depois da enchente.

De lá para cá, o instituto criou métodos próprios, acertou, errou, teve orçamentos altos e baixos e está prestes a iniciar a maior obra de sua história, orçada em mais de R$ 500 milhões: a duplicação do Elevado do Joá e a construção de uma ciclovia paralela às pistas. O prazo dos dias atuais é o calendário dos Jogos Olímpicos de 2016. Nos anos 1960, o limite era o pavor da chuva seguinte de verão.

Desde o início, o instituto conserva um corpo predominantemente técnico. Não por bondade de prefeitos, mas por medo. Mexer com a Geo-Rio significa pôr a cidade em alto risco. Por mais que outras trágicas enchentes tenham ocorrido em 1988, 1996 e 2010, o trabalho de meados dos anos 1960 evita danos ainda maiores. A qualidade da manutenção pode provocar a dúvida dos que olham atentamente para o alto, mas, apesar de algumas obras apresentarem concreto desgastado, a Geo-Rio diz que nenhuma corre risco de colapso.

O começo de tudo foi difícil.
- A cidade estava em pânico. Tínhamos cinco engenheiros, e eu fiquei com a tarefa de organizar o instituto para dar solução aos problemas - lembra o engenheiro Ronald Young, de 75 anos, que, aos 28, foi nomeado o primeiro diretor do instituto. - Mas não havia recursos nem gente. Em 1967, um acidente muito maior em Laranjeiras, com mais de cem mortos, resultou numa ação mais vigorosa, com mais investimento. Compramos até um helicóptero.

O desastre citado ocorreu em fevereiro de 1967. Foi provocado por uma pedra que rolou e destruiu uma casa e, em seguida, dois prédios nas ruas Belisário Távora e Cristóvão Barcelos, perto da General Glicério. Um dos mais de cem mortos foi o escritor Paulo Rodrigues, irmão de Nelson Rodrigues. O clamor popular aumentou, e a equipe do Instituto de Geotécnica passou a ter 30 engenheiros. Foi elaborado um programa de obras com grande aporte de recursos. À época, Negrão de Lima relatou que a campanha consumiu "quantias imensas, que dariam para construir mais de 20 viadutos ou dez túneis".

A tecnologia disponível era usada em hidrelétricas e na proteção de barragens. Seu uso em áreas densamente povoadas, em larga escala e com obras simultâneas, era inédito até no exterior, dizem engenheiros da época. O acesso aos locais era tarefa tão complicada e cara quanto a obra em si. Em dois anos, foram concluídos cerca de 200 projetos em locais como o vale da Rua Santo Amaro, na Glória; Timóteo da Costa, no Leblon; Sacopã, na Lagoa; Djalma Ulrich, em Copacabana; e morros como o dos Cabritos e Chapéu Mangueira. Nos anos seguintes, outros locais receberam obras de contenção, como a serra do Engenho Novo, Estrada da Barra, Corcovado, Rocinha, Avenida Niemeyer, diversos locais de Santa Teresa e Urca.

Mas a intervenção mais marcante foi a do Morro do Cantagalo, na parte virada para a Lagoa. A construção de quatro grandes pilares representa o esforço para implantar novos métodos. 

Primeiro, o helicóptero recém-comprado ajudou a levantar informações técnicas sobre a encosta. Foi montada, depois, uma escadaria de madeira para atingir os 210 metros de altura da grande fenda que existia sob uma formação rochosa de 50 mil toneladas que ameaçava tombar sobre prédios e um boliche frequentado por jovens da época, no Corte do Cantagalo. Os operários - nenhum deles usava equipamento de segurança - subiram pela escada, mas o material de construção não podia ser levado por eles. Foi preciso, então, montar um teleférico.
Assim, os pilares de concreto armado puderam ser erguidos e afixados na pedra. Por motivos óbvios, não foram usados explosivos. O instrumento de perfuração era martelete com broca de diamante, usado em obras rodoviárias e barragens. Com elas, operários furavam a rocha e inseriam cabos (tirantes) de aço. Depois, faziam a injeção de cimento, que se espalhava internamente e secava. Os cabos, por fim, eram presos aos pilares e recebiam uma carga.

Também foram feitas cortinas atirantadas em vários pontos da cidade, uma espécie de muro que bloqueia eventuais deslizamentos. O projeto demorou um ano e meio para ficar pronto. A cortina do Cantagalo aparenta desgaste, com vigas de metal bastante aparentes. Essa cortina serve para estabilizar a fenda aberta no morro e é profundamente ancorada na rocha com cabos ou tirantes de aço. A parte que apresenta algum desgaste é a de concreto. A Geo-Rio recebeu a foto enviada pelo "Globo a Mais", analisou e informou que não há qualquer risco e que manutenções estão programadas.

Outras tentativas, porém, não foram tão felizes assim. No Morro dos Cabritos, em Copacabana, a proposta inicial era plantar leguminosas com raízes muito abertas (um tipo de vagem) para penetrar no solo e evitar erosão. Mas uma praga de lagartos e besouros, além de animais da região, devorou a horta do Instituto de Geotécnica. A solução veio com uma série de obras. Com tantas intervenções, a cidade formal ficou cada vez mais segura, já que o instituto também era o responsável por licenciar obras em encostas. Em 1967, a Caixa Econômica Federal só financiava imóveis que apresentassem uma carta de segurança do órgão. O problema futuro, porém, estava nas favelas.

- Na época, o número de acidentes na zona urbana estruturada era muito maior do que na cidade ilegal, nas favelas. E hoje isso foi invertido, acontece muito mais nas favelas e quase nada na cidade legal - explica o ex-presidente da Geo-Rio Mauro Baptista.

O investimento, originalmente emergencial, criou as condições para um instituto que é referência nacional. Há convênios em andamento com outras prefeituras para a elaboração de obras, como em Vitória (ES) e Blumenau (SC). Mas também há problemas. Em 2010, o Tribunal de Contas do Município (TCM) divulgou um relatório que apontava sucessivas quedas de orçamento. A pedido do "Globo a Mais", o tribunal fez um novo levantamento sobre a execução orçamentária do órgão nos últimos dez anos.
Os números mostram que, quando há tragédia ou o ano é eleitoral, os aportes costumam aumentar. 

Em 2004, foram executados R$ 13 milhões (89,2% do previsto). Já em 2006, esse número caiu para um terço: R$ 4,4 milhões (93,7% executados). A virada só veio em 2010, ano de novas - e trágicas - enchentes na cidade. O orçamento foi multiplicado, com auxílio de programas do governo federal, e chegou a R$ 147 milhões, com execução de 98,64%. No ano seguinte, porém, o número permaneceu alto (R$ 108 milhões), mas apenas 54% foram executados. O presidente do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Rio de Janeiro (Crea-RJ), Agostinho Guerreiro, critica "orçamentos fictícios" e momentos em que o órgão não foi prestigiado como deveria:

- A criação da Geo-Rio foi uma medida extremamente importante naquele momento. O órgão tinha poder político, técnico e financeiro. 

Mas, ao longo das últimas décadas, esse poder foi sendo redistribuído. Hoje a Geo-Rio se reabilita um pouco exatamente em função de catástrofes. 

Apesar do esforço, infelizmente teremos novas tragédias com vítimas. O trabalho deles é muito sério, mas é preciso dinheiro. Sem isso, a tempestade sempre vai chegar na frente da Geo-Rio.

O atual presidente do órgão, Marcio Machado, está lá desde 1983, quando entrou como estagiário. Ele diz que as baixas execuções orçamentárias dos últimos anos ocorreram por causa de entraves burocráticos entre o município e o governo federal na assinatura dos convênios, o que transferiu investimentos para anos seguintes. Ele reconhece que os recursos minguavam, historicamente, à medida que as tragédias passavam. Mas ele acredita que a chuva de 2010 mudou esse quadro:

- A partir desse evento, o prefeito solicitou uma análise e estudamos profundamente as encostas. 

Esse diagnóstico mapeou 117 comunidades em situação de alto risco. Investimos no sistema Alerta Rio, adquirimos radar meteorológico e optamos por um sistema de alarmes sonoros, presentes em 98% dessas localidades - explica Machado. - Implantado o sistema, passamos a estudar as soluções para eliminar o problema, seja com obra de contenção, de remoção ou as duas coisas.

Cada uma das 117 comunidades, afirma o presidente, está com projetos prontos e que foram apresentados ao governo federal no fim de 2011. Os recursos, no entanto, ainda não foram liberados pela Caixa, e a expectativa é licitar as obras para 95 favelas até outubro. Os recursos chegam a R$ 350 milhões. As outras obras terão auxílio do governo estadual. Sobre a manutenção, Machado diz que há previsão de obras no Cantagalo e no Corcovado. As vistorias, explica, são feitas com a ajuda de um helicóptero:
- Nenhuma obra antiga da Geo-Rio corre risco na cidade, fazemos monitoramento constante. Gastamos cerca de R$ 5 milhões por ano com manutenção.

Há 45 anos, em mensagem escrita num livro comemorativo dos dois primeiros anos do instituto, Negrão de Lima assumiu com franqueza a ingrata tarefa imposta pela natureza: "Em janeiro de 1966, o acasalamento da beleza extasiante com uma geologia periclitante se revelou de maneira trágica. (...) O Rio viveu em perigosa inocência durante quatro séculos". E completou: "Hoje estamos pagando um alto preço, moral e material, por essas montanhas que, escreveu (o escritor e antropólogo britânico) Richard Burton no século passado, masculinizaram a graça feminina da paisagem".
Que essa fatura seja, quem sabe um dia, finalmente liquidada.

O Globo, Flávio Tabak, 09/set