O
trauma era recente, e as cobranças não cessavam. Os temporais de
1966 e 1967 deixaram mais de 300 mortos no Rio, e medidas urgentes
eram necessárias. Sob forte pressão popular, o então governador da
Guanabara, Negrão de Lima, notou que suas ações não estavam
aparecendo como deveriam. Foi então que, em 1967, reclamou com um
auxiliar: "Não estou vendo as obras!". A resposta de
Raimundo e Paula Soares, secretário de Obras Públicas, veio
imediatamente, e com tinta: foram pintados de branco todos os pilares
recém-construídos nas encostas, que até hoje sustentam rochas
gigantescas e fazem parte da paisagem.
O
tempo comprova que a tinta era boa, mas a pintura, hoje proibida em
novas obras por causa da poluição visual, foi só um detalhe em
meio aos esforços de engenheiros escalados para uma missão
desafiadora e pioneira: domar, em meados dos anos 1960, a rara
formação geológica do Rio, dos morros que desmanchavam em
temporais feito sorvete no calor, com rastros de destruição e
morte. Esses profissionais formaram a primeira equipe do Instituto de
Geotécnica, atual Geo-Rio, órgão criado por Negrão de Lima em
1966 logo depois da enchente.
De
lá para cá, o instituto criou métodos próprios, acertou, errou,
teve orçamentos altos e baixos e está prestes a iniciar a maior
obra de sua história, orçada em mais de R$ 500 milhões: a
duplicação do Elevado do Joá e a construção de uma ciclovia
paralela às pistas. O prazo dos dias atuais é o calendário dos
Jogos Olímpicos de 2016. Nos anos 1960, o limite era o pavor da
chuva seguinte de verão.
Desde
o início, o instituto conserva um corpo predominantemente técnico.
Não por bondade de prefeitos, mas por medo. Mexer com a Geo-Rio
significa pôr a cidade em alto risco. Por mais que outras trágicas
enchentes tenham ocorrido em 1988, 1996 e 2010, o trabalho de meados
dos anos 1960 evita danos ainda maiores. A qualidade da manutenção
pode provocar a dúvida dos que olham atentamente para o alto, mas,
apesar de algumas obras apresentarem concreto desgastado, a Geo-Rio
diz que nenhuma corre risco de colapso.
O
começo de tudo foi difícil.
- A
cidade estava em pânico. Tínhamos cinco engenheiros, e eu fiquei
com a tarefa de organizar o instituto para dar solução aos
problemas - lembra o engenheiro Ronald Young, de 75 anos, que, aos
28, foi nomeado o primeiro diretor do instituto. - Mas não havia
recursos nem gente. Em 1967, um acidente muito maior em Laranjeiras,
com mais de cem mortos, resultou numa ação mais vigorosa, com mais
investimento. Compramos até um helicóptero.
O
desastre citado ocorreu em fevereiro de 1967. Foi provocado por uma
pedra que rolou e destruiu uma casa e, em seguida, dois prédios nas
ruas Belisário Távora e Cristóvão Barcelos, perto da General
Glicério. Um dos mais de cem mortos foi o escritor Paulo Rodrigues,
irmão de Nelson Rodrigues. O clamor popular aumentou, e a equipe do
Instituto de Geotécnica passou a ter 30 engenheiros. Foi elaborado
um programa de obras com grande aporte de recursos. À época, Negrão
de Lima relatou que a campanha consumiu "quantias imensas, que
dariam para construir mais de 20 viadutos ou dez túneis".
A
tecnologia disponível era usada em hidrelétricas e na proteção de
barragens. Seu uso em áreas densamente povoadas, em larga escala e
com obras simultâneas, era inédito até no exterior, dizem
engenheiros da época. O acesso aos locais era tarefa tão complicada
e cara quanto a obra em si. Em dois anos, foram concluídos cerca de
200 projetos em locais como o vale da Rua Santo Amaro, na Glória;
Timóteo da Costa, no Leblon; Sacopã, na Lagoa; Djalma Ulrich, em
Copacabana; e morros como o dos Cabritos e Chapéu Mangueira. Nos
anos seguintes, outros locais receberam obras de contenção, como a
serra do Engenho Novo, Estrada da Barra, Corcovado, Rocinha, Avenida
Niemeyer, diversos locais de Santa Teresa e Urca.
Mas
a intervenção mais marcante foi a do Morro do Cantagalo, na parte
virada para a Lagoa. A construção de quatro grandes pilares
representa o esforço para implantar novos métodos.
Primeiro,
o helicóptero recém-comprado ajudou a levantar informações
técnicas sobre a encosta. Foi montada, depois, uma escadaria de
madeira para atingir os 210 metros de altura da grande fenda que
existia sob uma formação rochosa de 50 mil toneladas que ameaçava
tombar sobre prédios e um boliche frequentado por jovens da época,
no Corte do Cantagalo. Os operários - nenhum deles usava equipamento
de segurança - subiram pela escada, mas o material de construção
não podia ser levado por eles. Foi preciso, então, montar um
teleférico.
Assim,
os pilares de concreto armado puderam ser erguidos e afixados na
pedra. Por motivos óbvios, não foram usados explosivos. O
instrumento de perfuração era martelete com broca de diamante,
usado em obras rodoviárias e barragens. Com elas, operários furavam
a rocha e inseriam cabos (tirantes) de aço. Depois, faziam a injeção
de cimento, que se espalhava internamente e secava. Os cabos, por
fim, eram presos aos pilares e recebiam uma carga.
Também
foram feitas cortinas atirantadas em vários pontos da cidade, uma
espécie de muro que bloqueia eventuais deslizamentos. O projeto
demorou um ano e meio para ficar pronto. A cortina do Cantagalo
aparenta desgaste, com vigas de metal bastante aparentes. Essa
cortina serve para estabilizar a fenda aberta no morro e é
profundamente ancorada na rocha com cabos ou tirantes de aço. A
parte que apresenta algum desgaste é a de concreto. A Geo-Rio
recebeu a foto enviada pelo "Globo a Mais", analisou e
informou que não há qualquer risco e que manutenções estão
programadas.
Outras
tentativas, porém, não foram tão felizes assim. No Morro dos
Cabritos, em Copacabana, a proposta inicial era plantar leguminosas
com raízes muito abertas (um tipo de vagem) para penetrar no solo e
evitar erosão. Mas uma praga de lagartos e besouros, além de
animais da região, devorou a horta do Instituto de Geotécnica. A
solução veio com uma série de obras. Com tantas intervenções, a
cidade formal ficou cada vez mais segura, já que o instituto também
era o responsável por licenciar obras em encostas. Em 1967, a Caixa
Econômica Federal só financiava imóveis que apresentassem uma
carta de segurança do órgão. O problema futuro, porém, estava nas
favelas.
-
Na época, o número de acidentes na zona urbana estruturada era
muito maior do que na cidade ilegal, nas favelas. E hoje isso foi
invertido, acontece muito mais nas favelas e quase nada na cidade
legal - explica o ex-presidente da Geo-Rio Mauro Baptista.
O
investimento, originalmente emergencial, criou as condições para um
instituto que é referência nacional. Há convênios em andamento
com outras prefeituras para a elaboração de obras, como em Vitória
(ES) e Blumenau (SC). Mas também há problemas. Em 2010, o Tribunal
de Contas do Município (TCM) divulgou um relatório que apontava
sucessivas quedas de orçamento. A pedido do "Globo a Mais",
o tribunal fez um novo levantamento sobre a execução orçamentária
do órgão nos últimos dez anos.
Os
números mostram que, quando há tragédia ou o ano é eleitoral, os
aportes costumam aumentar.
Em
2004, foram executados R$ 13 milhões (89,2% do previsto). Já em
2006, esse número caiu para um terço: R$ 4,4 milhões (93,7%
executados). A virada só veio em 2010, ano de novas - e trágicas -
enchentes na cidade. O orçamento foi multiplicado, com auxílio de
programas do governo federal, e chegou a R$ 147 milhões, com
execução de 98,64%. No ano seguinte, porém, o número permaneceu
alto (R$ 108 milhões), mas apenas 54% foram executados. O presidente
do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Rio de Janeiro
(Crea-RJ), Agostinho Guerreiro, critica "orçamentos fictícios"
e momentos em que o órgão não foi prestigiado como deveria:
- A
criação da Geo-Rio foi uma medida extremamente importante naquele
momento. O órgão tinha poder político, técnico e financeiro.
Mas,
ao longo das últimas décadas, esse poder foi sendo redistribuído.
Hoje a Geo-Rio se reabilita um pouco exatamente em função de
catástrofes.
Apesar
do esforço, infelizmente teremos novas tragédias com vítimas. O
trabalho deles é muito sério, mas é preciso dinheiro. Sem isso, a
tempestade sempre vai chegar na frente da Geo-Rio.
O
atual presidente do órgão, Marcio Machado, está lá desde 1983,
quando entrou como estagiário. Ele diz que as baixas execuções
orçamentárias dos últimos anos ocorreram por causa de entraves
burocráticos entre o município e o governo federal na assinatura
dos convênios, o que transferiu investimentos para anos seguintes.
Ele reconhece que os recursos minguavam, historicamente, à medida
que as tragédias passavam. Mas ele acredita que a chuva de 2010
mudou esse quadro:
- A
partir desse evento, o prefeito solicitou uma análise e estudamos
profundamente as encostas.
Esse
diagnóstico mapeou 117 comunidades em situação de alto risco.
Investimos no sistema Alerta Rio, adquirimos radar meteorológico e
optamos por um sistema de alarmes sonoros, presentes em 98% dessas
localidades - explica Machado. - Implantado o sistema, passamos a
estudar as soluções para eliminar o problema, seja com obra de
contenção, de remoção ou as duas coisas.
Cada
uma das 117 comunidades, afirma o presidente, está com projetos
prontos e que foram apresentados ao governo federal no fim de 2011.
Os recursos, no entanto, ainda não foram liberados pela Caixa, e a
expectativa é licitar as obras para 95 favelas até outubro. Os
recursos chegam a R$ 350 milhões. As outras obras terão auxílio do
governo estadual. Sobre a manutenção, Machado diz que há previsão
de obras no Cantagalo e no Corcovado. As vistorias, explica, são
feitas com a ajuda de um helicóptero:
-
Nenhuma obra antiga da Geo-Rio corre risco na cidade, fazemos
monitoramento constante. Gastamos cerca de R$ 5 milhões por ano com
manutenção.
Há
45 anos, em mensagem escrita num livro comemorativo dos dois
primeiros anos do instituto, Negrão de Lima assumiu com franqueza a
ingrata tarefa imposta pela natureza: "Em janeiro de 1966, o
acasalamento da beleza extasiante com uma geologia periclitante se
revelou de maneira trágica. (...) O Rio viveu em perigosa inocência
durante quatro séculos". E completou: "Hoje estamos
pagando um alto preço, moral e material, por essas montanhas que,
escreveu (o escritor e antropólogo britânico) Richard Burton no
século passado, masculinizaram a graça feminina da paisagem".
Que
essa fatura seja, quem sabe um dia, finalmente liquidada.
O
Globo, Flávio Tabak, 09/set