sexta-feira, 8 de maio de 2015

O fim da festa


Quem observava o ritmo de crescimento do mercado imobiliário no passado recente podia desconfiar que a euforia não duraria para sempre. Desde que EXAME passou a acompanhar o desempenho do mercado imobiliário em parceria com a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), há quatro anos, havia sinais de que a valorização não tardaria a amornar. Depois de subir 26% em 2011, os preços médios dos imóveis usados no país já tinham avançado de maneira bem mais modesta em 2012 e 2013. Mas foi na mais recente edição da pesquisa da Fipe, envolvendo uma centena das principais cidades brasileiras, que o cenário ficou mais evidente. Em 2014, os imóveis residenciais usados valorizaram, em média, 6,9%. Foi o menor índice dos últimos anos e muito próximo da inflação no período, de 6,4%. Do ponto de vista de quem vende, a coisa já não andava bem no primeiro semestre do ano passado. E, com a Copa do Mundo e as eleições, o mercado piorou no segundo semestre. Em São Paulo, 60% da valorização acumulada em 2014 ocorreu até junho. No Rio de Janeiro, quase 70%. Em outros lugares, como no Distrito Federal, o ano fechou com queda nominal dos preços. Os novos tempos do mercado de imóveis, sem a euforia de pouquíssimo tempo atrás, efetivamente começaram. "É muito provável que 2015 seja o primeiro ano, depois de muito tempo, de queda real nos preços dos imóveis no Brasil", afirma Eduardo Zylberstajn, pesquisador da Fipe responsável pelo levantamento.

Esse quadro já foi observado no primeiro trimestre deste ano. De janeiro a março, os preços de casas e apartamentos em 20 cidades acompanhadas mensalmente pela Fipe avançaram apenas 0,7%, enquanto a inflação galopou - com o dólar em alta e os aumentos dos combustíveis e das tarifas de energia elétrica, o índice oficial de preços (o IPCA) avançou 3,8%, cinco vezes mais. Esse descompasso não acontecia no país desde 2002 - não por acaso, um ano marcado também por uma grave crise de confiança, câmbio nas alturas e inflação fora das metas. Na época, a valorização dos imóveis não chegou a um terço do IPCA acumulado no ano. Foi só a partir da segunda metade daquela década que passou a ser possível lucrar de verdade com a aquisição de um imóvel - os brasileiros logo se acostumaram a ganhar mais de 20% por ano com um apartamento comprado na planta.

Para quem quis surfar nos últimos momentos da recente onda de valorização, certamente é doloroso encarar os novos tempos. Já para os interessados em sair do aluguel ou investir, a cena pode ser diferente. "O momento é do comprador, não do vendedor", afirma Plínio Serpa Pinto, presidente da Brasil Brokers, empresa que reúne 25 imobiliárias e 14000 corretores em todo o país. Com o mercado parado, crescem as chances de encontrar incorporadoras mais dispostas a negociar. O que pressiona as construtoras é o grande número de apartamentos encalhados. No fim do ano passado, havia cerca de 130 bilhões de reais em imóveis lançados e não vendidos no Brasil, cifra 17% superior à de cinco anos antes. Isso apesar de as construtoras terem reduzido drasticamente o número de novos empreendimentos nos principais mercados. Em 2014, as empresas com ações na bolsa de valores - as maiores do setor - fizeram menos da metade dos lançamentos de 2011. Para se livrar do que sobrou, vale tudo. A exemplo, realizou em março um dia de promoções com descontos de até 36% nos apartamentos em estoque. Conseguiu negociar 400 unidades por 190 milhões de reais. Nos feirões de imóveis promovidos pela Caixa Econômica Federal, que começaram no fim de abril e se estendem até junho, construtoras como a mineira Tenda dão descontos de mais de 50 000 reais, além de impostos e taxas de cartório pagos.

É esperado que, com o estoque de encalhes em nível recorde, as incorporadoras partam para promoções mais agressivas do que no passado recente. Mas a verdade é que o mercado de imóveis novos vive há dois anos uma espécie de crise particular, motivada pela falta de controle nos lançamentos, pelo estouro nos custos e pela má gestão. O que diferencia o fenômeno atual é que a queda no ritmo está acontecendo em todos os mercados, sobretudo no de imóveis usados (que formam a imensa maioria do estoque nas capitais brasileiras). Por que, então, desta vez é diferente?

O APERTO DO CRÉDITO

Um dos truísmos do mercado imobiliário argumenta que ele é impulsionado por dois motores - renda e crédito. Gente que ganha mais fica mais confiante e, se tem acesso a crédito fácil, assume o risco de comprar um imóvel que só será quitado em duas, três décadas. No Brasil dos últimos dez anos, os dois motores funcionaram a toda. O crédito, sobretudo. Os financiamentos para a compra de imóveis no Brasil passaram de 3 bilhões de reais, em 2004, para 113 bilhões, no ano passado. Mesmo com juros ainda altos para os padrões internacionais (quase sempre superiores a 10% ao ano), os brasileiros olhavam a valorização dos imóveis e concluíam: se eu comprar agora, logo meu imóvel valerá muito mais; portanto, vale a pena tomar o empréstimo. Virou praxe financiar até 90% do valor do imóvel em 30 anos. Mas, como muitas das características que marcaram o Brasil maravilha da última década, a combinação de renda com crédito que impulsionou o mercado imobiliário está, rapidamente, minguando.

O Brasil de 2015 é o país da inflação que beira os 10%, dos juros que superam os 13%, da recessão líquida e certa, do desemprego que aumenta. Estima-se que o PIB per capita vá cair até 2018. Não é um cenário que inspire confiança em grandes apostas no futuro. E, para completar, os bancos estão apertando o crédito. A Caixa Econômica Federal, responsável por 70% do crédito imobiliário do país, elevou os juros duas vezes neste ano e diminuiu a fatia do imóvel que pode ser financiada - um tiro mortal para muitos pretendentes à compra de um imóvel. Os clientes do banco, que até janeiro pagavam taxas de 8,75% ao ano, hoje arcam com, no mínimo, 9,3% anuais - e não podem financiar mais do que 50% do valor de casas e apartamentos usados (antes, era possível financiar até 80%). Segundo os cálculos de João da Rocha Lima, coordenador do núcleo de mercado imobiliário da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, a mudança no limite de financiamento fará com que, na média, uma família tenha de esperar mais 12 anos até juntar o dinheiro necessário para dar de entrada. A conseqüência de tudo isso não poderia ter sido outra: no primeiro trimestre, o volume de financiamentos da casa própria caiu quase 5% em relação ao mesmo período do ano passado - a primeira retração nesse período em 13 anos.

Com menos recursos disponíveis, os financiamentos tendem a se tornar mais seletivos e caros. Ou seja, mesmo que os preços caiam, comprar vai continuar difícil - como fazer a parcela caber no bolso? A Caixa não mudou as regras para a compra de imóveis novos, numa tentativa de manter relativamente aquecido o mercado de construção civil. Ainda assim, tudo indica que as mudanças no crédito vão travar ainda mais o mercado. Afinal, na maioria das vezes, para poder adquirir um imóvel novo, uma família precisa antes se desfazer daquele em que mora - e achar interessados com condições de dar de entrada metade do valor não é uma tarefa fácil. "Enquanto a renda das famílias crescia, os custos de financiamento caíam e os prazos aumentavam, era possível comprar um imóvel apesar dos preços. Mas as condições do jogo mudaram e está cada vez mais difícil fechar a conta", diz Nicole Hirakawa, analista do banco Credit Suisse. Um índice de affordability - a viabilidade de comprar um imóvel -, calculado pelo banco, passou a ficar negativo em cidades como São Paulo no início deste ano, sugerindo que ficou mais difícil adquirir um imóvel, principalmente para quem depende de crédito. O indicador leva em consideração itens como a renda média da população e os juros. Com as taxas em alta, também não vale a pena comprar imóveis para alugá-los em seguida. Em cidades como o Rio de Janeiro, a rentabilidade média proporcionada pelos aluguéis - quanto se ganha com a locação em relação ao que se paga por um imóvel - está em 0,36% ao mês. Em São Paulo, é de 0,43%. Com a elevação nos juros e a freada na valorização dos imóveis, fica mais atraente e seguro simplesmente deixar o dinheiro numa aplicação de renda fixa. Fundos que seguem a taxa básica de juros pagam, hoje, 1% ao mês.

É esperado que um mercado imobiliário em alta ajude a impulsionar a economia. Claro, um setor de construção civil saudável e em expansão traz benefícios óbvios. Mas entra em ação também o mecanismo conhecido como efeito riqueza: os donos de imóveis que valorizam se sentem mais ricos e consomem mais, ajudando setores que não têm nada a ver com o mercado imobiliário. Uma queda nos preços, mesmo que não leve a uma depressão como a que se seguiu ao estouro da bolha imobiliária americana, certamente atrapalha bastante. Mas há ajustes e ajustes - muitos são bem-vindos. Parece ser o caso no mercado imobiliário brasileiro, que passou por uma euforia que beirava a irracionalidade. O crescimento do crédito - no caso da Caixa, com motivações eleitorais um tanto óbvias - era acelerado demais, o que fazia os preços subir muito mais do que a renda das famílias. Aquele ritmo era insustentável. E, não custa lembrar, a expansão desorganizada das construtoras levou o setor a uma crise da qual não saiu até hoje. O cenário, agora, é de uma saudável acomodação. O choque de realidade atual pode ajudar a colocar as coisas num patamar mais razoável. A decisão de comprar ou vender um imóvel vai ser difícil, árdua, dolorida - como, afinal de contas, deve mesmo ser.



Exame, Especial Imóveis, 08/mai