sexta-feira, 11 de março de 2016

'Arquitetura é a moldura do homem na sociedade'


"Nasci em 1974, tenho seis filhos, sou divorciado e vivo em Cascais, perto de Lisboa, numa casa modernista, feita por um arquiteto português. Parece brasileira. Minha rua tem o cheiro do Rio, uma mistura de fumaça de carro com maresia. Sou professor de desenho na Faculdade de Arquitetura na Universidade de Lisboa e faço poesia."

Conte algo que não sei.

Antigamente, eu não sabia que sabia desenhar. Descobri que sabia em 1996, quando comecei a dar aulas na faculdade. Tive certeza de que todo mundo consegue se comunicar através do desenho. Mas nem todos conseguem levar seu desenho ou aptidão a uma fronteira que, quando ultrapassada, chamamos de arte.

O que é imprescindível ensinar aos futuros arquitetos?

Saber pensar. E sentir através do desenho. É preciso ensinar os alunos a desenhar estes objetos que já existem, para depois eles conseguirem pensar em objetos que um dia vão existir, que eles vão criar.

A arquitetura conta a história de uma cidade?

A arquitetura é uma espécie de moldura do homem na sociedade. Falar de arquitetura e poder é óbvio, porque não há rei sem palácio. A arquitetura acaba sendo o cenário, o campo de representação onde posso desempenhar meus rituais, desde os mais prosaicos, como escovar os dentes. Por isso o desenho é fundamental: ninguém sabe o que há na cabeça do arquiteto.

O que é uma relação sadia entre cidadão e arquitetura?

O uso do objeto arquitetônico é pleno, até psicanalítico. Imagine uma pessoa que nasceu numa casa com três quartos e uma sala e outra que nasceu num palácio com 50 quartos e um salão. A noção de espaço é simbólica e é sensível. O papel do arquiteto é complicadíssimo. A grande questão (que deve ser respondida) é: quem são estas pessoas que eu vou colocar aqui para habitar? Ou, de uma forma subversiva: em que quero que estas pessoas se transformem ao habitar a cidade que estou desenhando?

E a arquitetura do Rio?

A primeira imagem que me vem à cabeça é de uma espécie de cidade dentro de uma floresta. Vim de metrô do meu hotel, e na Prudente de Morais (Ipanema), fiquei fascinado, porque as árvores constroem uma estrutura que é arquitetônica. São "ruas" feitas pelas árvores.

Como você interpretaria a história da cidade?

Eu que sou português, não olho para a construção barroca de vocês como arquitetura colonial portuguesa no Brasil. Eu vejo como arquitetura brasileira feita no período colonial. E lamento quando os brasileiros recusam esta nacionalidade. Acho que o brasileiro começa a existir em 1500 e ponto. Há uma miscigenação arquitetônica completa.

O que acha das megatorres espelhadas?

Sempre gostei de reflexos. O problema é a falta de imaginação do arquiteto. Mas acontecem coisas através dos reflexos: você consegue visitar o edifício que está do outro lado da rua e o vê recortado em fragmentos, como se fosse uma imagem pixelizada, ou neoplasticista, como Mondrian. Acho as torres monótonas e, por outro lado, poéticas, porque refletem o céu. Um céu vertical às vezes. Também é um problema filosófico, como são todos espelhos, é espelho contra espelho, portanto há muitos infinitos nestas ruas.

Qual é hoje o maior desafio das cidades?

Planejamento urbano. Uma das contradições do planejamento urbano é a recusa da estratificação social. Muitos projetos modernistas parecem ignorar que há ricos e pobres. Como ignorar as condições antropológicas e sociais que cada pessoa traz para o lugar? Se ignorar, fica só com estética e dimensão. A arquitetura não é um quadro que se põe na parede. Você tem que viver lá dentro.



O Globo, Conde Algo Que Não Sei, 11/mar