sexta-feira, 12 de maio de 2017

Passeio arquitetônico


Em 1º de março de 1565, uma turma de Portugal resolveu oficializar a criação de uma cidade instalada entre o mar e a montanha. Desde então, a tal Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro enfrenta, além das imposições naturais, intervenções urbanísticas que mexem e remexem com a sua paisagem de forma radical. A estreia do documentário "Crônica da demolição", de Eduardo Ades, sobre a destruição de um belo patrimônio da cidade, o Palácio Monroe, inspira um roteiro em torno do que ficou de pé nessa história arquitetônica carioca.

Especialistas no tema apontam exemplos de estilos diferentes como barroco, mourisco, neogótico, art déco... Do prédio que é testemunha do Brasil Colônia à construção contemporânea premiada, passando pelo marco modernista, basta sair pela cidade e viajar pela história da arquitetura.

Referência em art déco

O pesquisador Márcio Roiter, que preside o Instituto Art Déco lembra que o movimento artístico surgiu na Europa em 1910, mas só bombou a partir da década de 1950 na arquitetura do Brasil, onde se imbricou com as linhas da cultura indígena marajoara e privilegiou os traços retos e harmônicos aliados ao brilho e ao luxo dos detalhes. A fachada do Teatro Carlos Gomes, que Roiter informa que já teve a marquise inteiramente iluminada, e os detalhes do cinema Roxy são dois grandes exemplos.

Joias mouriscas

A influência moura transparece em alguns prédios da cidade. No Centro, tem a fachada do Teatro Riachuelo, que já foi Cine Palácio e Cassino Nacional Brasileiro, transformado em prédio neomourisco em 1901. Na Rua da Carioca, o palacete que é sede da Casa do Choro desde 2015 chama a atenção. A construção, de 1902, tinha o apelido de "mourisquinho" e abrigou o Lar das Crianças Israelitas. Depois, uma das salas foi escritório de João Alvino, que promovia rodas de choro com convidados do naipe de Jacob do Bandolim, Pixinguinha e Altamiro Carrilho. A prática já antecipava o futuro do lugar, onde hoje o choro se abriga entre amplas janelas ogivadas e uma torre coroada por uma cúpula que precisou de cuidadosa intervenção e renovação do sistema estrutural.

- João Alvino veio na inauguração e ficou encantado com a obra que fizemos aqui - diz Luciana Rabello, presidente da Casa do Choro.

Mas a estrela do mourisco no Rio fica em Manguinhos: tombado de Iphan, o Castelinho da Fundação Oswaldo Cruz data de 1918, um ano após a morte do sanitarista, que o rabiscou de próprio punho e passou a missão ao arquiteto português Luís Moraes Júnior. Entre inúmeros detalhes, se destacam as torres com cúpula de cobre, as janelas, a escadaria de mármore carrara e os mosaicos dos pisos, que lembram a tapeçaria árabe. Além de referência em pesquisa, a Fiocruz abriga atrações como o Museu da Vida, o borboletário e peças de teatro. 

Fundação Oswaldo Cruz. Av. Brasil 4.365, Manguinhos - 2590-6747. 

Casa do Choro. Rua da Carioca, 38, Centro - 2242-9947.

Teatro Riachuelo. Rua do Passeio 38, Centro - 3005-3432.

Rio eclético

Alguns prédios têm características de diferentes estilos arquitetônicos. O Teatro Municipal, por exemplo, de 1909, é um dos mais exuberantes do chamado eclético. Foi criado pelo arquiteto francês Albert Guilbert com inspiração no Palais Garnier, da Ópera de Paris. Bem mais sóbrio, o prédio do Centro Cultural Banco do Brasil é do ecletismo tardio, com traços do neoclássico. A mistura também pode ser vista na Confeitaria Colombo, no Castelinho do Flamengo e no Museu Nacional de Belas Artes.

- O Municipal evoca a Belle Époque francesa em seu luxo, ao mesmo tempo que seu café é de estilo neobabilônico. O prédio do CCBB é de um neoclássico bem mais comum e urbano, mas com um átrio monumental. O Castelinho do Flamengo tem traços góticos e maneiristas, mas com colunas retorcidas e ornamentação sofisticada, querendo passar uma certa erudição de seus donos - explica o arquiteto Washington Fajardo.

Teatro Municipal. Praça Floriano s/nº, Centro - 2299-1711. Sábado (13.05), as visitas guiadas (às 11h, 12h e 13h), têm preço especial: quatro ingressos por R$ 20.

Memória do período colonial

O que restou da arquitetura que vai de 1550 até o início da República é um testemunho de como era a sociedade na época do Brasil Colônia. Construções retangulares, calçamento pé de moleque e prédios públicos com paredes grossas para resistir a bombardeios são algumas de suas características. Um grande destaque da arquitetura do período é o Paço Imperial, erguido junto à antiga casa da moeda e ao armazém real. Datada de 1743, a construção, hoje tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), no início serviu como residência, tendo sido casa dos governadores e dos vice-reis. Em 1808, com a chega da Família Real, foi transformada em Paço Real.

O espaço, que sediou eventos históricos como o Dia do Fico e a assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel, virou centro cultural em 1985.

- Infelizmente a prefeitura não passou o projeto do VLT pela Primeiro de Março, que possui essa joia da coroa da nossa arquitetura. O Paço é mais antigo que o império e é o conjunto mais importante do período colonial - enfatiza o arquiteto Carlos Fernando de Andrade, ex-superintendente do Iphan.

Paço Imperial. Praça Quinze de Novembro 48, Centro - 2220-2991. Ter a dom, do meio-dia às 18h. Grátis. 

O neogótico e o estilo manuelino

Local onde aconteceu o último baile da monarquia, a Ilha Fiscal guarda um dos ícones do neogótico brasileiro. O palacete, que foi um posto alfandegário construído por Dom Pedro II e hoje é um museu mantido pela Marinha, tem torres agulhadas e arcos de ogiva que remetem à Europa medieval. Além da visitação normal ao espaço, neste domingo de Dia das Mães, a programação será especial, com concerto do harpista Luis Zaracho.

O estilo também aparece em algumas construções religiosas da cidade. Em Botafogo, com direito a uma rosácea na fachada, a Paróquia Imaculada Conceição de Botafogo, mesmo parcialmente escondida pelo Viaduto Santiago Dantas, também dá um ar medieval à Praia de Botafogo. Na Praça Tiradentes, a Catedral Presbiteriana do Rio chama a atenção pela sua aparência inspirada na Catedral de Saint-Pierre, em Genebra.

Perto dali, o impressionante Real Gabinete Português de Leitura (que está na lista das 20 bibliotecas mais bonitas do mundo da revista "Time") pertence ao estilo gótico manuelino, também chamado de gótico português - ou neomanuelino, descrito como uma resistência, com identidade nacional lusa, ao neogótico.

Com estátuas de Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Infante Dom Henrique e Luís de Camões na fachada, o lugar se transformou em biblioteca pública em 1900 e reúne 350 mil livros, sendo, no mundo, o maior acervo de literatura portuguesa fora de Portugal.

Ilha Fiscal. Acesso através do Complexo Cultural da Marinha. Centro. Rua Dom Manuel 15, Praça Quinze - 2532-5992. Visitação de escuna (sábado e domingo) e de micro-ônibus (quinta e sexta), às 12h30m, às 14h e às 15h30m.R$ 30. Neste domingo (14.05), há concerto gratuito do harpista Luis Zaracho, com música latino-americana, às 16h. 

Arte de se ver de joelhos

O barroco e o rococó estão presentes em praticamente todas as igrejas católicas históricas da cidade. O barroco se caracteriza pela ornamentação abundante e pelos desenhos variados e complexos das plantas e fachadas, com revestimento feito com materiais nobres. O rococó foi o estilo posterior, que tornou o barroco mais leve e iluminado, como explica a pesquisadora e professora da UFRJ Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, especialista em arte sacra.

- A Igreja da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência (onde a talha dourada do interior causa impacto em quem adentra o prédio de fachada pouco exuberante) é a mais completa do barroco joanino. E a do rococó é a Igreja Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé, que foi a primeira catedral da cidade - diz Myriam.

Autora da publicação "Barroco e rococó nas igrejas do Rio de Janeiro", distribuída pelo Iphan, a pesquisadora mapeou 25 igrejas históricas que estão em funcionamento. Myriam observa que no Rio há dois estilos diferentes: o barroco italiano do século XVII, em que há o contraste entre sombras e luzes (caso do Mosteiro de São Bento), e o rococó francês, do século XVIII, fruto da efervescência econômica da antiga capital. Este segundo é o predominante nas igrejas cariocas.

- Para ter isso é preciso ter riqueza econômica. Por isso, aqui tem mais igrejas rococós e até barrocas do que em Ouro Preto - completa.

Ordem Terceira de São Francisco da Penitência. Rua da Carioca s/nº, Centro. Ter a sex, das 9h às 12h e das 13h às 16h. 

Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé. Rua Sete de Setembro 14. Seg a sex, das 7h30m às 16h. Sáb, das 9h30m ao meio-dia.

Mosteiro de São Bento. Rua Dom Gerardo 40. Dirariamente, das 8h às 18h. Missas com canto gregoriano: sáb, às 8h; dom, às 10h.

Ícones de concreto

O ponto forte da cidade é o modernismo. O Rio tem marcos do estilo como o Palácio Gustavo Capanema, que foi concebido por uma equipe que reunia estrelas como Le Corbusier (considerado a figura mais importante da arquitetura moderna), Lúcio Costa, Oscar Niemeyer e Affonso Eduardo Reidy. O prédio conta ainda com painéis de Candido Portinari e jardins de Burle Marx.

- O Rio é muito feliz culturalmente neste período. A cidade, ainda como capital e dedicada ao poder, aglutinava os debates nacionais. O Palácio Gustavo Capanema, que, infelizmente, ainda está em obras, sintetiza o conceito e a vanguarda da tecnologia brasileira para isso, como a ideia da pele de vidro, que causou espanto em vários países - diz Washington Fajardo, que há uma semana lançou o livro "Transformações urbanísticas" com a pesquisadora Patrícia Pamplona, sobre a evolução da cidade a partir de seus marcos arquitetônicos e mudanças urbanísticas.

Fajardo destaca também o térreo proeminente do prédio, seu grande pé-direito e o recurso chamado brise-soleil (quebra-sol).

Parte do time do Capanema, Affonso Reidy assina também ícones cariocas como o Museu de Arte Moderna (MAM), entre outros símbolos do modernismo.

Fajardo observa que, no caso do MAM, o edifício é um exemplo do chamado brutalismo, que trabalha essencialmente com o uso do concreto armado bruto, sem ornamentos e sem ocultar elementos como fiações e encanamentos.

- A ocupação pela moradia também era uma preocupação forte do estilo e da filosofia do movimento, que abraçava o bem-estar social, pois o concreto armado barateou o processo construtivo - pondera Fajardo. - Com o gênio do Niemeyer, chega também o rompimento com a linguagem racional, e as construções se tornam fáceis de reproduzir e plásticas. Assim, o Brasil se tornou uma referência no uso do concreto. O Brasil não tem prêmio Nobel, mas tem dois prêmios Pritzker, que é o equivalente na arquitetura: Paulo Mendes da Rocha e Niemeyer.

Museu de Arte Moderna. Av. Infante Dom Henrique 85, Aterro do Flamengo - 3883-5600.

Traços contemporâneos

A classificação arquitetura contemporânea esconde uma complexidade técnica e conceitual que embaralha até as cabeças mais sintonizadas com o assunto, mas ousadia tecnológica e arquitetônica - como o rompimento com a rigidez racional do modernismo -, funcionalidade, boa colocação na cidade e adoção medidas de sustentabilidade são algumas de suas características.

Ganhador do prêmio internacional Mipim na categoria "Construção verde mais inovadora" em março, o Museu do Amanhã foi o primeiro museu brasileiro a receber o título. A tecnologia para captar energia solar e o uso das águas geladas do fundo da Baía de Guanabara no sistema de ar-condicionado foram alguns dos motivos para a escolha. Ano passado, a construção também venceu o britânico Leading Culture Destinations Awards, que o elegeu como o "Melhor novo museu do ano".

- O arquiteto Le Corbusier dizia mais ou menos que uma construção de pé é engenharia, mas, quando ela emociona, é arquitetura. O Museu do Amanhã talvez seja o melhor trabalho do [arquiteto espanhol] Santiago Calatrava pelo mundo - diz o arquiteto Lauro Cavalcanti, diretor do Instituto Casa Roberto Marinho, que será inaugurado em dezembro no Cosme Velho.

A Cidade das Artes, também assinada por um arquiteto badalado internacionalmente, o francês Christian de Portzamparc, abriu plenamente em 2013. O complexo cultural passou por polêmicas como o gasto na construção, que ultrapassou R$ 500 milhões. Outro exemplo de arquitetura contemporânea citado por Lauro Cavalcanti são os dois prédios que formam o Museu de Arte do Rio - o antigo Palacete Dom João VI e o novo, da Escola do Olhar - são unidos por meio de uma praça, uma passarela e cobertura em forma de onda. A ideia, como preza a boa arquitetura, é a união entre o antigo e novo de forma harmônica.

Cidade das Artes. Av. das Américas 5.300, Barra - 3325-0102. 

Museu de Arte do Rio. Praça Mauá 5, Centro - 3031-2741.

Museu do Amanhã. Praça Mauá 1, Centro - 3812-1800.



O Globo, Gilberto Porcidonio, 12/mai